quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

E PODE? O RENASCIMENTO DA AUTONOMIA

Um texto sobre humanização do parto, vitalidade, conexão à vida, encontros desconcertantes e Biodanza!



“Uma mulher selvagem assemelha-se muito a um lobo; robusta, plena, com grande força vital, que dá a vida, que tem consciência de seu território, engenhosa, leal, que gosta de perambular. Entretanto, a separação da natureza selvagem faz com que a personalidade da mulher se torne mesquinha, parca, fantasmagórica, espectral. Não fomos feitas para ser franzinas, de cabelos frágeis, incapazes de saltar, de perseguir, de parir, de criar uma vida. Quando as vidas das mulheres estão em estase, tédio, já está na hora de a mulher selvática aflorar”.
'Mulheres que correm com lobos'
Clarissa Pinkola Estés

A exibição do documentário O Renascimento do Parto - O Filme antes de ontem na Câmara dos Deputados com a presença da produtora e doula Érica de Paula, a médica epidemiologista Daphne Rattner e o médico obstetra Dr. Ricardo Herbert Jones foi importante demais. O debate foi uma oportunidade única! Entre tantos ensinamentos, o Dr. Ricardo Jones nos proporcionou uma lição de humanização e humanidade, com suas fortes histórias e Memórias do Homem de Vidro! (nome de um dos seus livros).
 
O movimento da humanização do parto tem por princípio a vida, que está escondida abaixo dos nossos medos. Para encontrar sua força é preciso acordar nossos instintos, que foram e são diariamente anestesiados por uma cultura que pretende dominar e controlar o desconhecido, dizendo-nos o que fazer, o que comer, o que vestir, o que sentir, de quem gostar, como parir. Atrás dessa enorme arrogância, esconde-se um medo enorme. No final das contas temos duas opções: ou encaramos as dores e as delícias de viver e isso acontece no nosso corpo ou, em prol de não sentir dor, acabaremos não sentindo mais nada, e anestesiados de nós mesmos relegaremos nossa autonomia com perguntas e desculpas demasiadas.
 
Há dois meses tive outra aula sobre autonomia na Escola de Biodanza Rolando Toro de Brasília. Aprendíamos sobre vitalidade. Vitalidade é um conceito fundamental na Biodanza. A vitalidade se expressa na nossa capacidade de conexão à vida. No nosso estado normal e saudável conseguimos estabelecer uma conexão com todas as manifestações de vida que nos rodeiam. “Uma espécie de sabedoria milenar orienta os seres vivos para as fontes nutrícias do mundo; a percepção se dirige para aquilo que gera neles vida e mais vida” (Rolando Toro).
Para o criador da Biodanza, no entanto, infelizmente a maioria das pessoas perdeu essa capacidade, por um lento processo de degradação instintiva. “A conexão à vida se encontra, hoje em dia, totalmente atrofiada. Quase não há ‘reflexos de vida’ no cidadão comum de nossas metrópoles. Poder-se-ia alegar que a doença é a incapacidade de estabelecer ‘feedbacks’ com tudo aquilo que está vivo no ambiente.” (Rolando Toro).
Para recuperar a nossa vitalidade, Rolando Toro Acuña, filho do mestre chileno, nos provocou a sermos intolerantes: “Em algum momento na vida”, ele disse, “deve-se ser 100% intolerante com o que te faz mal!”.
Isso não deveria ser tão difícil de aprender, mas a depender dos fortes condicionamentos culturais a que se esteve exposto e do forte empuxo contrário da massa, se deparar com essa realidade pode ser desconcertante. Essa é uma boa palavra “desconcertar”, pois talvez tenhamos sido concertados demais por uma educação equivocada. De uns tempos para cá, tenho sido constantemente “desconcertada”! E bom para isso são os exemplos. Eu admito ser uma pessoa que precisa de referenciais coletivos, o que talvez se justifique por ser eu regida pelo signo dos cardumes ou porque simplesmente sou humana.
Vou compartilhar uma breve história de um desconcerto: a intensa convivência com uma amiga, um desses seres raros com fogo de cauda, que os astros me trouxeram, me ensinou que se podia questionar, que se podia não fazer e que se podia ir além e viver aqui, viva mesmo, aquilo que a saudade me pintara apenas como lembrança de um paraíso nostálgico. Uma surpresa infantil me despertava a cada vez que eu a testemunhava em sua indomada vontade de viver e me impelia internamente a repetir “e pode?” Muitas coisas com as quais eu assentia, pelo contrato invisível do medo e das convenções, me faziam mal e eu nem era mais capaz de perceber a devastação em minha vitalidade, curtida que fui no vinagre de uma educação envelhecida, que me ensinara a obedecer às leis sociais mais do que a mim mesma. Ao compartilhar com ela esse sentimento de espanto pueril, minha amiga brindou-me com a história de sua sobrinha que, na sabedoria de sua primeira infância, disse que não queria ser adulta. Questionada por que, com clareza e singeleza, respondeu: porque as mulheres adultas têm cabelos curtos! Docemente sua tia lhe explicou que também havia adultas de cabelos compridos, e que ela e seus cabelos podiam, então, crescer despreocupadamente e ser da forma como quisessem. Compreendi! Eu também podia ser adulta de cabelos e mente livres.
As informações são também importantes ferramentas no nosso desconcerto. Antes de ontem no debate, uma gestante ansiosa por traçar um plano claro para sua gravidez, pergunta se num hospital ela teria a mesma possibilidade de decidir como parir do que no seu domicílio ou em uma casa de parto. Dr. Ricardo Jones percebe, no seu questionamento, que a mulher tateia no mundo novo da autonomia, como tantos de nós diariamente. E nos responde: - esse é o trabalho de vocês! Lutar! Essa é mais uma batalha de uma guerra iniciada há séculos pelas mulheres: lutar por nossas almas, por nossos direitos, por nossos desejos e agora por nossa conexão com o corpo. Esse corpo que sabe como fecundar, sabe como gestar, também sabe como parir! Dr. Ricardo nos prescreve um poderoso antídoto contra a perda da autonomia: a informação! Informação gera consciência, que gera um bom parto, que gera uma nova sociedade!
Somos mestres uns dos outros. Sempre haverá guardado noutro ser humano qualquer espanto que nos desconcerte! Minha amiga me ajudou a me desconcertar e me reconectar mais à vida! Uma gestante ajudou a desconcertar um residente de obstetrícia, que hoje com amor educa e ajuda a outras tantas pessoas a se desconcertarem também! É um desafio quebrar as regras, mas a vida está lá por trás. É lindo ouvir os relatos de mulheres que ousaram a confiar em seus corpos e se sentiram fortalecidas. Essa é a sensação da vitalidade!
A sociedade e suas regras são tão contraditórias, que mais cedo ou mais tarde se percebe que é melhor ser ousado do que endoidecer! Sim, podemos ser 100% intolerantes com aquilo que nos faz mal! E exemplos e informações são muito bem vindos em qualquer idade!
Desconcertemo-nos! Seja por meio de encontros sagrados com os outros, com a natureza ou consigo mesmo. Outro instrumento poderoso para isso é a Biodanza. Biodanza é uma ousadia! Na contramão dos envelopados dias com endereço e destinatários certos, a Biodanza ousa nos colocar na deliciosa trilha dos nossos instintos, para os quais cada dia é o primeiro e o último dia de nossas vidas! A Biodanza é uma pedagogia do viver, que nos desconcerta! Sua proposta é despertar essa capacidade de conexão à vida, de conexão consigo mesmo, de conexão com o semelhante e de conexão com as forças vivas do universo. Nos reconecta ao nosso corpo, aos nossos instintos, onde encontramos força, autoestima e sabedoria. Porque “a dança, como toda arte, é comunicação do êxtase. É uma pedagogia do entusiasmo, no sentido original da palavra: sentimento da presença de Deus e participação no Ser de Deus” (Roger Garaudy em Dançar a Vida, p. 24).
E pode? Sim!! Aos cabelos, mentes e ventres livres!




“A Mulher Selvagem pertence a todas as Mulheres!
Para encontrar a Mulher Selvagem é necessário que as mulheres se voltem para suas vidas instintivas, sua sabedoria mais profunda. Portanto, vamos nos apressar agora e trazer nossas lembranças de volta ao espírito da Mulher Selvagem.
Vamos cantar sua carne de volta aos nossos ossos.
Despir quaisquer mantos falsos que tenhamos recebido.
Assumir o manto verdadeiro do poder do conhecimento e do instinto.
Invadir os terrenos psíquicos que nos pertenceram um dia.
Desfraldar as faixas, preparar a cura.
Voltemos agora, mulheres selvagens, a uivar, rir e cantar para Aquela que nos ama tanto.
Para nós, a questão é simples: sem nós, a Mulher Selvagem morre; sem a Mulher Selvagem, nós morremos."

'Mulheres que correm com lobos'
Clarissa Pinkola Estés


Fica a dica de um filme desconcertante: La Belle Vert http://youtu.be/tYxS_7ZJmHI



Referências Bibliográficas:
Estés, C. P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
 
Toro, R. Apostila Vitalidade. International Biocentric Foundation.

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