domingo, 9 de junho de 2013

Elena


 
Dedicado à Elena, à Elena em Petra, à Elena em mim, à Elena que busca em todos o êxtase da vida.

Ontem assisti à Elena, não a de Tróia, mas a de outra guerra, a santa guerra interior. Ontem assisti Elena crescer e ter um sonho, o sonho de virar atriz. Ontem assisti a um espetáculo em que Elena dançava lindamente, seu corpo de menina era pura entrega e verdade ao lado de sua irmã e depois nos palcos Elena dançava e se enroscava numa corda. Elena se enroscou num sonho de Petra. Elena se enroscou no seu próprio sonho.

Já me enrosquei num sonho de vida também. Num sonho de puro êxtase e traição, eu caminhava pela crosta terrestre, numa planície escura e deserta, eu via a lua nova. Seguia um pouco mais e avistava a lua crescente. Um pouco adiante e a lua minguante se apresentava. De lua em lua, algo em mim anunciava a véspera de um acontecimento de proporções apocalípticas quando eu denunciei a vista da próxima e última lua. Quando a cheia apareceu, revelando-me o mistério, eu comecei a flutuar e a ascender pelo imenso universo. Levitando avistei a luz que dividia o horizonte e que me preenchia de pleno amor. Percebi que outras pessoas estavam comigo a volitar pelo imenso céu cósmico. Quando um conhecimento me chegou. Havia no céu três grupos de pessoas: o primeiro do qual eu fazia parte, era o grupo das pessoas que queriam a luz; o segundo era formado por pessoas que não queriam a luz; e no terceiro havia pessoas que não sabiam, tinham dúvidas. E a luz só poderia ser sustentada quando todas as pessoas a desejassem. Nesse exato momento da revelação, eu caí! Caí e o amor que eu sentia foi substituído imediatamente por uma espécie de raiva, misturada com frustração, decepção, incompreensão e uma imperiosa vontade manipulativa! Eu não poderia estar mais plena de amor por causa dos outros?? Eles precisavam querer! Por mim, para mim, para eu viver o êxtase!

À época desse sonho eu estava iniciando a minha árdua jornada de autoconhecimento aos meus vinte e muitos anos. Foi como receber o mapa onírico da minha estrada. Eu queria o êxtase, só o amor me bastava. Por ele comprei muita briga comigo mesma, até me odiar e não me reconhecer nessa fúria. Nessa busca descobri a meditação. Descobri que respirar dá um maior barato e abre como um vendaval as portas da plenitude. A vida só passou a fazer sentido na meditação. Fora dela tudo era opaco. Não demorou muito meu sistema interno se desarmou e o alarme se ativou. É o que sempre acontece quando algo me rouba à vida. Uma vez uma crença me roubou tanto à vida que quase enlouqueci por ela, nesse dia meu sistema desarmou e com uma dor lancinante na alma abri mão da crença. Abrir mão da vida é o pensamento que desarma toda minha engrenagem. A questão “Por que vivo?” está escrita no muro no final da dor, muro onde tudo capota, enguiça, entra no caos e se dissipa. Quando chego até essa pergunta é porque estou sem condições de guiar minha existência, então largo a mão do volante, me entrego à vida, que com sua inteligência me salva e me retira dali. Com o resto de mim encontro o que não finda, encontro minha essência. Quando percebi que a meditação começara a me roubar da vida, abri mão do êxtase que dela provinha.

Elena chega à cidade de Nova Iorque com o sonho de ser atriz. Adverte-se a si mesma que numa cidade como aquela é preciso querer pouco, pequeno, senão a cidade a engoliria. Elena queria, não sei quanto Elena quis, mas a cidade venceu uma batalha e Elena capitulou. Elena só conseguia viver na arte, fora dela era dor. Elena oscilava entre pura arte e pura angústia. Não pode conceber uma vida sem arte. Assim seu puro sonho de êxtase, roubou sua vida. Elena enrosca no seu sonho e se morre.  

A arte está, para mim, assim quase no topo das atividades humanas, pois que não conheço nada mais integrador. Onde o puro Ser se revela e vive por nossos pés e braços e ventre e pescoço e pele e ossos e mãos e instrumentos. Lembro-me de ‘O Homem da Mão Seca’ de Adélia Prado... eu que também dou por minhas mãos o êxtase da expressão ao Criador, já me amedrontei com a ameaça da falta. Confesso meu crime: já tentei violentar as palavras, quando elas me deixaram em abstinência. É pura dor. É abandono de Deus. Aprendi a não ser mais tão "epifânica". Aprendi a cuidar da vida sem esperar revelações. E entendi que a arte está quase no topo das manifestações humanas. Quase. No topo está a vida e tudo o que a gerar.

Minha Elena, Elena de Adélia, Elena da fúria dos meus sonhos. Todas nós Elenas que vimos. Todas que minguamos de saudade. Todas que desejamos a graça do viver. Todas que damos passagem à arte. Demos, antes, passagem à vida! Quando vivemos pelo teatro, pela dança, pela poesia, por qualquer forma de arte ou por qualquer outro motivo, seja pessoa, profissão ou sonho, há quem reclame. A vida já é o seu próprio motivo. Sempre que nos fixamos em um lugar, estamos fugindo de outro. E a vida quer passagem. Quer passar por céus e sóis, pela terra firme e arada, pelas enchentes dos nossos rios, pelos Ínferos da nossa dor. Nós somos o êxtase, amantes da luz, mas somos sombra e somos dúvida, morada da vida simples, da espera, lugar dos mortais.

Elena você é linda. Petra você é força, transmutação. Honro suas histórias. Traços da minha. Vida minha que me ensinou que é ela mesma a maior das artes. Viver a arte é devolver à força da vida o lugar do centro dos nossos corações. Seguir seu fluxo é a dança que pretendo.