Dedicado à Elena, à Elena em Petra, à Elena em mim, à Elena
que busca em todos o êxtase da vida.
Ontem assisti à Elena, não a de Tróia, mas a de outra
guerra, a santa guerra interior. Ontem assisti Elena crescer e ter um sonho, o
sonho de virar atriz. Ontem assisti a um espetáculo em que Elena dançava
lindamente, seu corpo de menina era pura entrega e verdade ao lado de sua irmã
e depois nos palcos Elena dançava e se enroscava numa corda. Elena se enroscou
num sonho de Petra. Elena se enroscou no seu próprio sonho.
Já me enrosquei num sonho de vida também. Num sonho de puro
êxtase e traição, eu caminhava pela crosta terrestre, numa planície escura e
deserta, eu via a lua nova. Seguia um pouco mais e avistava a lua crescente. Um
pouco adiante e a lua minguante se apresentava. De lua em lua, algo em mim
anunciava a véspera de um acontecimento de proporções apocalípticas quando eu
denunciei a vista da próxima e última lua. Quando a cheia apareceu, revelando-me
o mistério, eu comecei a flutuar e a ascender pelo imenso universo. Levitando
avistei a luz que dividia o horizonte e que me preenchia de pleno amor. Percebi
que outras pessoas estavam comigo a volitar pelo imenso céu cósmico. Quando um
conhecimento me chegou. Havia no céu três grupos de pessoas: o primeiro do qual
eu fazia parte, era o grupo das pessoas que queriam a luz; o segundo era
formado por pessoas que não queriam a luz; e no terceiro havia pessoas que não
sabiam, tinham dúvidas. E a luz só poderia ser sustentada quando todas as
pessoas a desejassem. Nesse exato momento da revelação, eu caí! Caí e o amor que
eu sentia foi substituído imediatamente por uma espécie de raiva, misturada com
frustração, decepção, incompreensão e uma imperiosa vontade manipulativa! Eu
não poderia estar mais plena de amor por causa dos outros?? Eles precisavam
querer! Por mim, para mim, para eu viver o êxtase!
À época desse sonho eu estava iniciando a minha árdua
jornada de autoconhecimento aos meus vinte e muitos anos. Foi como receber o
mapa onírico da minha estrada. Eu queria o êxtase, só o amor me bastava. Por
ele comprei muita briga comigo mesma, até me odiar e não me reconhecer nessa
fúria. Nessa busca descobri a meditação. Descobri que respirar dá um maior
barato e abre como um vendaval as portas da plenitude. A vida só passou a fazer
sentido na meditação. Fora dela tudo era opaco. Não demorou muito meu sistema interno
se desarmou e o alarme se ativou. É o que sempre acontece quando algo me rouba
à vida. Uma vez uma crença me roubou tanto à vida que quase enlouqueci por ela,
nesse dia meu sistema desarmou e com uma dor lancinante na alma abri mão da
crença. Abrir mão da vida é o pensamento que desarma toda minha engrenagem. A
questão “Por que vivo?” está escrita no muro no final da dor, muro onde tudo
capota, enguiça, entra no caos e se dissipa. Quando chego até essa pergunta é
porque estou sem condições de guiar minha existência, então largo a mão do
volante, me entrego à vida, que com sua inteligência me salva e me retira dali.
Com o resto de mim encontro o que não finda, encontro minha essência. Quando
percebi que a meditação começara a me roubar da vida, abri mão do êxtase que
dela provinha.
Elena chega à cidade de Nova Iorque com o sonho de ser
atriz. Adverte-se a si mesma que numa cidade como aquela é preciso querer
pouco, pequeno, senão a cidade a engoliria. Elena queria, não sei quanto Elena quis,
mas a cidade venceu uma batalha e Elena capitulou. Elena só conseguia viver na
arte, fora dela era dor. Elena oscilava entre pura arte e pura angústia. Não
pode conceber uma vida sem arte. Assim seu puro sonho de êxtase, roubou sua
vida. Elena enrosca no seu sonho e se morre.
A arte está, para mim, assim quase no topo das atividades
humanas, pois que não conheço nada mais integrador. Onde o puro Ser se revela e
vive por nossos pés e braços e ventre e pescoço e pele e ossos e mãos e instrumentos.
Lembro-me de ‘O Homem da Mão Seca’ de Adélia Prado... eu que também dou por
minhas mãos o êxtase da expressão ao Criador, já me amedrontei com a ameaça da
falta. Confesso meu crime: já tentei violentar as palavras, quando elas me
deixaram em abstinência. É pura dor. É abandono de Deus. Aprendi a não ser mais
tão "epifânica". Aprendi a cuidar da vida sem esperar revelações. E entendi que a
arte está quase no topo das manifestações humanas. Quase. No topo está a vida e
tudo o que a gerar.
Minha Elena, Elena de Adélia, Elena da fúria dos meus sonhos.
Todas nós Elenas que vimos. Todas que minguamos de saudade. Todas que desejamos
a graça do viver. Todas que damos passagem à arte. Demos, antes, passagem à
vida! Quando vivemos pelo teatro, pela dança, pela poesia, por qualquer forma
de arte ou por qualquer outro motivo, seja pessoa, profissão ou sonho, há quem
reclame. A vida já é o seu próprio motivo. Sempre que nos fixamos em um lugar,
estamos fugindo de outro. E a vida quer passagem. Quer passar por céus e sóis, pela
terra firme e arada, pelas enchentes dos nossos rios, pelos Ínferos da nossa
dor. Nós somos o êxtase, amantes da luz, mas somos sombra e somos dúvida,
morada da vida simples, da espera, lugar dos mortais.
Elena você é linda. Petra você é força, transmutação. Honro
suas histórias. Traços da minha. Vida minha que me ensinou que é ela mesma a maior
das artes. Viver a arte é devolver à força da vida o lugar do centro dos nossos
corações. Seguir seu fluxo é a dança que pretendo.