sábado, 28 de dezembro de 2013

TRANSE


Transformation - Leonid Afremov
TRANSE

Desejo para o fim do mundo
trocar de pelagem, 
mudar de coragem.
Amarrar meu rumo noutra paisagem.
Afiar as garras
em lençóis de seda
e pisar firme
na terra seca.
Uivar, uivar.
Ressoar meu medo e força
sob noite estrelada
e já de dedo em ponta
sobre a imensidão do nada
girar, girar.
Perder pernas, pés e braços
lançar ventre e véu no espaço
Rebobinar a espécie
Encontrar-me sopro
Encontrar-me vento
Encontrar-me caos
Lançar-me ao fio do novo verbo:
Faça-me luz, acendam-me sóis!
Corram-me rios, faunas e fluidos!
Debruce-me terra!
Madeiras ‘raízem-me’!
Jorrem-me leite e estrelas
Que sou bezerro novo
A esperar sem mistério
A noiva alma
Num corpo que dança
Em núpcias!

domingo, 24 de novembro de 2013

Dança de Shiva



“Atenta para as sutilezas
que não se dão em palavras.
Compreende o que não se deixa
capturar pelo entendimento”

Jalal Un-din Rumi


Escorrem os dias de novembro com suas águas e seus mistérios de vésperas. O vulto do escorpião que passou a 15 centímetros de mim e de meu cachorro, quando ele rolava na grama e eu sentada o contemplava , me furtou outras imaginações. Que quis Deus? Por que me domina essa lembrança? Sim, certo! É a morte. E eu não quis matá-la. Preocupada, porém, pedi ajuda. Um rapaz, desses mais bem aventurado com as coisas da vida, o pescou com um galho e o levou para um esgoto afastado do prédio. Ele também não pertence ao signo que mata a morte, suponho. Mas ela ronda, Deus quis que eu soubesse. E continua.

Outro dia, uma andorinha na minha janela, que ficou um bom terço das horas ali, parecia me pedir algo. Temi levantar e assustá-la, então permaneci estudando e ela permaneceu querendo dentro de mim. Resolvi buscar água. Não a vi mais...

Noutro outro dia a dona da ronda aparece em sua hora noturna, num bom sonho alquímico: um homem me dava dicas de como escolher o melhor serviço de crematório. Explicava-me que essas grandes indústrias não eram uma boa escolha, pois elas misturavam o pó das pessoas, e me mostrava um vaso onde restavam cinzas de duas delas. Explicou-me que era melhor procurar um serviço mais artesanal. Eu resolvi jogar aquelas cinzas no rio-mar Amazonas, que acabava junto a janela de vidro atrás da qual eu me encontrava. Eu julguei que a família daquelas cinzas não se importariam com isso. Joguei, mas as cinzas em vez de espalharem-se, formaram um só bloco que ficou boiando nas águas. Quis desmanchar aquilo e comecei a jogar água com minhas mãos para que os respingos o dissolvessem. De repente as cinzas coaguladas saíram de cena e entrou uma moça sobre a qual caíam os respingos. Eu a perguntei por que ela, que passava todo dia ali, pois era seu caminho, não se dava ao prazer de entrar na água mais vezes...  Depois de ter me admirado o quão parada estava a água, um vento começa a criar ondas e prenunciar a chuva que cai numa tempestade. Tranco bem a janela e as ondas começam a bater abaixo dela.

E para finalizar o mês de novembro com seus mistérios do tártaro, me pega de jejum a dona da ronda... Saio ontem, sábado, a levar o meu filhote para o seu passeio diurno e me chama a atenção uma andorinha! no chão em frente ao meu prédio, me agacho para vê-la e a encontro viva, com sua respiração, sua dificuldade. Sua dor me atiça o útero, viro mãe, oh meu bichinho de asas, sua dor é a minha! Faço-te carinho e choro desconsolada, porque eu também sou bicho e não me governo. Lanço-me alegre ao sol e dou-me ao encontro da dureza. Vejo seu fluido no chão. Não sei o que fazer, mas fico a te acarinhar. Testemunho tuas asas se abrirem trêmulas, no último gesto para que foste feito, e se fecharem calmas com o último sopro de ar que percorreu tua respiração. Seu Chico cavou a terra, escolhemos flores, porque todos merecem ser vistos, cuidados e celebrados!

Deus sabe que não sou de prontidão para o desvelado, mas que me provocam as sutilezas, as leio, as traduzo, as conduzo para fora e para dentro de mim. Não quis Ele dividir os ingressos, eram todos meus!

Há poucos dias iniciei-me na dança de Shiva e a pratico todos os dias, “a mais clara imagem da atividade de Deus de que qualquer arte ou religião possa orgulhar-se” (Ananda Coomaraswamy apud Garaundy). Shiva, o deus que dança, cria o mundo continuamente, o mantém no ritmo da dança, depois o destrói para outras formas nascerem infinitamente, torna a reencarnação um percurso para que não nos iludamos na limitação da existência e nos saúda com a libertação, pela qual nos faz conscientes de que somos um momento em sua atividade rítmica. Faço então meus os gestos do deus, assim posso não entender suas ideias, mas aprimoro meu equilíbrio no caos e me preparo para os próximos movimentos.

E por que é tempo de ir, numa mesma noite atrativa de lua cheia, duas estrelas também se foram diante dessa testemunha dos sinais de novembro!

 
Referências bibliográficas:
Garaudy, Roger. Dançar a vida. Tradução de Antônio Guimarães Filho e Glória Mariani. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (1980).

Figura: 'O pato, a morte e a tulipa' do livro de mesmo nome de Wolf Erlbruch


quinta-feira, 18 de julho de 2013

MENINO-CÃO: A ARTE E A CURA PSICOLÓGICA




“Estamos suficientemente conscientes para sermos dilacerados pelos conflitos da vida. Mas ainda não suficientemente conscientes para sentir a unidade fundamental da vida.”
Robert Johnson.

 
Esse texto é sobre o que ensina a vida à arte e a arte à vida e como me inspiro nelas para viver e trabalhar com a Psicoterapia Profunda, a Terapia na Caixa de Areia e a Biodanza.
 
Nos últimos meses vinha me sentindo desconfortável com algumas situações e algo na minha conduta diante de tais circunstâncias também parecia fora de quadro, o que só agravava o desconforto. Muitas notícias difíceis sobre familiares, todas envolvendo ora doença, ora morte, fazia pairar sobre mim a sombra da vida e da inconsciência, como uma nuvem negra a me perseguir.
 
Uma compreensão que sempre me fora natural e que com o passar do tempo ganhara contornos cognitivos, é a de que somos responsáveis por aquilo que vivemos, sentimos e criamos, desde uma visão de mundo até uma doença. Também sempre me fora particular a atitude de não tentar convencer ninguém daquilo que acredito, tampouco de impor ao outro um caminho. Mas quando a vida começou a passar a fatura sobre a forma de doença para a minha família, minhas atitudes careceram da conhecida serenidade.
Experimentava, agora, a emoção dos que desejam mostrar ao outro aquilo que aprenderam e acreditam, na tentativa de ampliar-lhes a visão sobre a responsabilidade e consciência sobre a vida.
Dentre as muitas situações vividas e minhas muitas novas opiniões sobre tudo, lhes conto sobre a minha indignação prévia contra a não revelação do estado de saúde de uma pessoa para ela mesma, que é grave e terminal. Sob argumentos amorosos, os que cuidam e convivem com ela, não concedem a oportunidade de ela experimentar sua despedida da vida! Assim leu e julgou quem quer ter plena consciência de sua própria partida. Senti que testemunhava a perda de um belo momento.
Quando a aquarela da saudade pinta, os cenários cotidianos ganham molduras de um amarelo ouro envelhecido e o dia ou noite parecem ter sempre a luz das seis horas da tarde. A verdade revelada no lusco-fusco de quem parte pode valer por uma vida inteira, calei por dentro esse breve divagar. E bravejei contra os que agem em nome do bem, sem saber que ao preservar o outro da dor, retiram dele a responsabilidade sobre a própria existência.
A despeito, contudo, desses meus recentes posicionamentos, algo dentro de mim descarrilhou depois de ter tido esse e tantos outros julgamentos na esteira da mesma linha de produção ‘doença-morte-dor-família’. Resolvi ouvir o outro lado.
Surpreendi-me então ao ouvir sincero ato de amor de quem cuida. No meio dessa doença surpresa, ainda se desdobravam para auxiliá-la a realizar um desejo, mudar-se de casa. Feliz com a expectativa, ela encaixota seus objetos, faz as malas e sonha com a nova morada. Parei por um momento a pressentir a jogada da vida. Aos poucos, sem que eu percebesse de imediato, apaziguava-me e percebia novamente meus líquidos interiores.
Ainda na mesma semana, assisti a um programa na TV sobre a literatura de Wolf Erlbruch, um premiado ilustrador e autor alemão de livros infantis. Na entrevista, a jornalista perguntara de onde ele tirava tanta imaginação, uma vez que seus temas eram muito diferentes. Da vida mesmo, contestou. E contou a origem do seu livro ‘Leonardo’: seu filho quando pequeno gostava muito de cachorros, mas depois de se assustar com um dos grandes roubando inesperadamente um biscoito de sua mão, a relação entre eles ficara difícil. Então a criança resolveu compensar essa história se tornando um deles. “Quando se é um cachorro não se precisa mais ter medo de cachorro” compreendeu Erlbruch. Ele passou os quatro primeiros anos de vida sendo um cachorro, quase o tempo todo de quatro. A família, num gesto que só almas poéticas podem alcançar, apesar do embaraço, resolveu entrar na onda daquela imaginação, servindo o ‘filho de estimação’ debaixo da mesa quando iam aos restaurantes! Até que um belo dia, puf, se desfizeram a metamorfose e seu medo de cachorros. 
Essa história trouxe minha alma de volta do difícil mundo dos julgamentos, a que o conflito com minha sombra a conduziu, e a recolocou no seu mundo preferido, o da arte! Sem juízos, sem enquadramento, a vida flui para a cura por ela mesma.
Em todos há uma consciência maior, que a despeito da razão, acha os caminhos. Segundo a psicologia analítica de Jung a psique é constituída pelo consciente e pelo inconsciente e pela interação entre eles. Chamamos de Self o centro e a totalidade da personalidade (consciente e inconsciente) da qual o ego, centro apenas da consciência, se desenvolve. A autonomia do ego é por isso limitada, já que suas raízes estão no Self, o organizador da psique. Na terapia da Caixa de Areia, técnica desenvolvida por Dora Kalff, baseada em grande parte nas teorias de Jung e Neumann, o Self é convidado a recuperar seu lugar como personagem principal no desenvolvimento da psique sem direcionamento externo, atitude comum no primado do intelecto. Evidencia-se na terapia da Caixa de Areia a diferença entre cura psicológica e expansão da consciência. Enquanto a primeira restaura a capacidade de funcionar normalmente, a última está relacionada em saber o que se está sentindo, pensando e agindo e com base nisso, fazer escolhas. Uma consciência ampliada não garante a cura. Já a cura psicológica, um fenômeno emocional, cria condições para que o insight e a consciência se desenvolvam naturalmente.
Como base em abordagens corporais, pode-se dizer que foi utilizada a inteligência do corpo: “O conhecimento efetivado pelo corpo é de extrema sutileza e demanda a mobilização do corpo subjetivo por inteiro, que opera aqui como por apalpação do mundo” (Dejours, 2012). É a inteligência de Métis, deusa grega da astúcia, que inspira os organismos vivos a se confundirem com a natureza por mimetismo para se defender ou para capturar sua presa. Essa inteligência corporal é recuperada em Biodanza, no resgate da conexão com as funções básicas da vida. A Biodanza reconecta o homem com sua natureza instintiva devolvendo-lhe a capacidade de autorregulação e cura.
Leonardo Boff num documentário em que fala de Jung e Espiritualidade conta que uma vez ele perguntara a Franz, filho de Jung, porque eles não viraram psicanalistas como o pai, ao que ele respondeu: “nosso pai disse que nós não precisávamos, porque os problemas que nós tínhamos podiam ser curados pela própria vida, porque normalmente a vida cura a vida e quando a vida não consegue curar-se a si mesma, você se socorre do analista que te ajuda a encontrar a sua vida e o caminho da sua vida”.
E assim muitas vezes crianças nem senhoras precisam de analistas ou de alguém a lhes acusar demência ou inconsciência, elas viram cachorros e preparam a mudança de lar. É a inteligência instintiva cuidadosamente as conduzir dia a dia, vida a vida. Estejamos atentos à vida para não ofendê-la em sua astúcia e criatividade! O caminho à consciência é o destino humano e vem naturalmente em consequência da cura psicológica.


 

Referências bibliográficas:
DEJOURS, Christophe. Trabalho Vivo. Sexualidade e Trabalho. Paralelo 15, 2012.
JOHNSON, Robert A. A Chave do Reino Interior. São Paulo: Mercuryo, 1989.
WEINRIB, Estelle L. Imagens do Self. O processo terapêutico na caixa-de-areia. São Paulo: Summus, 1993.


domingo, 9 de junho de 2013

Elena


 
Dedicado à Elena, à Elena em Petra, à Elena em mim, à Elena que busca em todos o êxtase da vida.

Ontem assisti à Elena, não a de Tróia, mas a de outra guerra, a santa guerra interior. Ontem assisti Elena crescer e ter um sonho, o sonho de virar atriz. Ontem assisti a um espetáculo em que Elena dançava lindamente, seu corpo de menina era pura entrega e verdade ao lado de sua irmã e depois nos palcos Elena dançava e se enroscava numa corda. Elena se enroscou num sonho de Petra. Elena se enroscou no seu próprio sonho.

Já me enrosquei num sonho de vida também. Num sonho de puro êxtase e traição, eu caminhava pela crosta terrestre, numa planície escura e deserta, eu via a lua nova. Seguia um pouco mais e avistava a lua crescente. Um pouco adiante e a lua minguante se apresentava. De lua em lua, algo em mim anunciava a véspera de um acontecimento de proporções apocalípticas quando eu denunciei a vista da próxima e última lua. Quando a cheia apareceu, revelando-me o mistério, eu comecei a flutuar e a ascender pelo imenso universo. Levitando avistei a luz que dividia o horizonte e que me preenchia de pleno amor. Percebi que outras pessoas estavam comigo a volitar pelo imenso céu cósmico. Quando um conhecimento me chegou. Havia no céu três grupos de pessoas: o primeiro do qual eu fazia parte, era o grupo das pessoas que queriam a luz; o segundo era formado por pessoas que não queriam a luz; e no terceiro havia pessoas que não sabiam, tinham dúvidas. E a luz só poderia ser sustentada quando todas as pessoas a desejassem. Nesse exato momento da revelação, eu caí! Caí e o amor que eu sentia foi substituído imediatamente por uma espécie de raiva, misturada com frustração, decepção, incompreensão e uma imperiosa vontade manipulativa! Eu não poderia estar mais plena de amor por causa dos outros?? Eles precisavam querer! Por mim, para mim, para eu viver o êxtase!

À época desse sonho eu estava iniciando a minha árdua jornada de autoconhecimento aos meus vinte e muitos anos. Foi como receber o mapa onírico da minha estrada. Eu queria o êxtase, só o amor me bastava. Por ele comprei muita briga comigo mesma, até me odiar e não me reconhecer nessa fúria. Nessa busca descobri a meditação. Descobri que respirar dá um maior barato e abre como um vendaval as portas da plenitude. A vida só passou a fazer sentido na meditação. Fora dela tudo era opaco. Não demorou muito meu sistema interno se desarmou e o alarme se ativou. É o que sempre acontece quando algo me rouba à vida. Uma vez uma crença me roubou tanto à vida que quase enlouqueci por ela, nesse dia meu sistema desarmou e com uma dor lancinante na alma abri mão da crença. Abrir mão da vida é o pensamento que desarma toda minha engrenagem. A questão “Por que vivo?” está escrita no muro no final da dor, muro onde tudo capota, enguiça, entra no caos e se dissipa. Quando chego até essa pergunta é porque estou sem condições de guiar minha existência, então largo a mão do volante, me entrego à vida, que com sua inteligência me salva e me retira dali. Com o resto de mim encontro o que não finda, encontro minha essência. Quando percebi que a meditação começara a me roubar da vida, abri mão do êxtase que dela provinha.

Elena chega à cidade de Nova Iorque com o sonho de ser atriz. Adverte-se a si mesma que numa cidade como aquela é preciso querer pouco, pequeno, senão a cidade a engoliria. Elena queria, não sei quanto Elena quis, mas a cidade venceu uma batalha e Elena capitulou. Elena só conseguia viver na arte, fora dela era dor. Elena oscilava entre pura arte e pura angústia. Não pode conceber uma vida sem arte. Assim seu puro sonho de êxtase, roubou sua vida. Elena enrosca no seu sonho e se morre.  

A arte está, para mim, assim quase no topo das atividades humanas, pois que não conheço nada mais integrador. Onde o puro Ser se revela e vive por nossos pés e braços e ventre e pescoço e pele e ossos e mãos e instrumentos. Lembro-me de ‘O Homem da Mão Seca’ de Adélia Prado... eu que também dou por minhas mãos o êxtase da expressão ao Criador, já me amedrontei com a ameaça da falta. Confesso meu crime: já tentei violentar as palavras, quando elas me deixaram em abstinência. É pura dor. É abandono de Deus. Aprendi a não ser mais tão "epifânica". Aprendi a cuidar da vida sem esperar revelações. E entendi que a arte está quase no topo das manifestações humanas. Quase. No topo está a vida e tudo o que a gerar.

Minha Elena, Elena de Adélia, Elena da fúria dos meus sonhos. Todas nós Elenas que vimos. Todas que minguamos de saudade. Todas que desejamos a graça do viver. Todas que damos passagem à arte. Demos, antes, passagem à vida! Quando vivemos pelo teatro, pela dança, pela poesia, por qualquer forma de arte ou por qualquer outro motivo, seja pessoa, profissão ou sonho, há quem reclame. A vida já é o seu próprio motivo. Sempre que nos fixamos em um lugar, estamos fugindo de outro. E a vida quer passagem. Quer passar por céus e sóis, pela terra firme e arada, pelas enchentes dos nossos rios, pelos Ínferos da nossa dor. Nós somos o êxtase, amantes da luz, mas somos sombra e somos dúvida, morada da vida simples, da espera, lugar dos mortais.

Elena você é linda. Petra você é força, transmutação. Honro suas histórias. Traços da minha. Vida minha que me ensinou que é ela mesma a maior das artes. Viver a arte é devolver à força da vida o lugar do centro dos nossos corações. Seguir seu fluxo é a dança que pretendo.