“Atenta para as sutilezas
que não se dão em palavras.
Compreende o que não se deixa
capturar pelo entendimento”
Jalal Un-din Rumi
Escorrem os dias de novembro com
suas águas e seus mistérios de vésperas. O vulto do escorpião que passou a 15
centímetros de mim e de meu cachorro, quando ele rolava na grama e eu sentada o
contemplava , me furtou outras imaginações. Que quis Deus? Por que me domina
essa lembrança? Sim, certo! É a morte. E eu não quis matá-la. Preocupada, porém,
pedi ajuda. Um rapaz, desses mais bem aventurado com as coisas da vida, o pescou
com um galho e o levou para um esgoto afastado do prédio. Ele também não
pertence ao signo que mata a morte, suponho. Mas ela ronda, Deus quis que eu soubesse.
E continua.
Outro dia, uma andorinha na minha
janela, que ficou um bom terço das horas ali, parecia me pedir algo. Temi
levantar e assustá-la, então permaneci estudando e ela permaneceu querendo
dentro de mim. Resolvi buscar água. Não a vi mais...
Noutro outro dia a dona da ronda
aparece em sua hora noturna, num bom sonho alquímico: um homem me dava dicas de
como escolher o melhor serviço de crematório. Explicava-me que essas grandes
indústrias não eram uma boa escolha, pois elas misturavam o pó das pessoas, e
me mostrava um vaso onde restavam cinzas de duas delas. Explicou-me que era
melhor procurar um serviço mais artesanal. Eu resolvi jogar aquelas cinzas no
rio-mar Amazonas, que acabava junto a janela de vidro atrás da qual eu me
encontrava. Eu julguei que a família daquelas cinzas não se importariam com
isso. Joguei, mas as cinzas em vez de espalharem-se, formaram um só bloco que
ficou boiando nas águas. Quis desmanchar aquilo e comecei a jogar água com
minhas mãos para que os respingos o dissolvessem. De repente as cinzas
coaguladas saíram de cena e entrou uma moça sobre a qual caíam os respingos. Eu
a perguntei por que ela, que passava todo dia ali, pois era seu caminho, não se
dava ao prazer de entrar na água mais vezes... Depois de ter me admirado o quão parada estava
a água, um vento começa a criar ondas e prenunciar a chuva que cai numa
tempestade. Tranco bem a janela e as ondas começam a bater abaixo dela.
E para finalizar o mês de
novembro com seus mistérios do tártaro, me pega de jejum a dona da ronda...
Saio ontem, sábado, a levar o meu filhote para o seu passeio diurno e me chama
a atenção uma andorinha! no chão em frente ao meu prédio, me agacho para vê-la
e a encontro viva, com sua respiração, sua dificuldade. Sua dor me atiça o
útero, viro mãe, oh meu bichinho de asas, sua dor é a minha! Faço-te carinho e
choro desconsolada, porque eu também sou bicho e não me governo. Lanço-me
alegre ao sol e dou-me ao encontro da dureza. Vejo seu fluido no chão. Não sei
o que fazer, mas fico a te acarinhar. Testemunho tuas asas se abrirem trêmulas,
no último gesto para que foste feito, e se fecharem calmas com o último sopro
de ar que percorreu tua respiração. Seu Chico cavou a terra, escolhemos flores,
porque todos merecem ser vistos, cuidados e celebrados!
Deus sabe que não sou de
prontidão para o desvelado, mas que me provocam as sutilezas, as leio, as
traduzo, as conduzo para fora e para dentro de mim. Não quis Ele dividir os
ingressos, eram todos meus!
Há poucos dias iniciei-me na
dança de Shiva e a pratico todos os dias, “a mais clara imagem da atividade de
Deus de que qualquer arte ou religião possa orgulhar-se” (Ananda Coomaraswamy
apud Garaundy). Shiva, o deus que dança, cria o mundo continuamente, o mantém
no ritmo da dança, depois o destrói para outras formas nascerem infinitamente,
torna a reencarnação um percurso para que não nos iludamos na limitação da
existência e nos saúda com a libertação, pela qual nos faz conscientes de que
somos um momento em sua atividade rítmica. Faço então meus os gestos do deus,
assim posso não entender suas ideias, mas aprimoro meu equilíbrio no caos e me
preparo para os próximos movimentos.
E por que é tempo de ir, numa
mesma noite atrativa de lua cheia, duas estrelas também se foram diante dessa
testemunha dos sinais de novembro!
Referências bibliográficas:
Garaudy, Roger. Dançar a vida.
Tradução de Antônio Guimarães Filho e Glória Mariani. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira (1980).
Figura: 'O pato, a morte e a
tulipa' do livro de mesmo nome de Wolf Erlbruch